Artigo Original
Conhecimento de pediatras e nutricionistas
sobre o tratamento da alergia ao leite
de vaca no lactente
Pediatricians and
nutritionists knowledge about treatment of cow milk allergy in infants
Resumo
Objetivo:
Avaliar o conhecimento de pediatras e nutricionistas sobre a dieta de exclusão
do leite de vaca e seus derivados, com ênfase em questões relacionadas à
nutrição da criança.
Métodos: Estudo
transversal descritivo, do qual participaram pediatras (n=53) e nutricionistas
(n=29), vinculados a hospitais públicos do Município de São Paulo, no ano de
2005. Os dados foram coletados por questionário auto-administrado.
Resultados: A
idade dos profissionais variou de 21 a 50 anos. Quanto ao tempo de graduação,
41,2% eram formados a menos de cinco anos e 91,6% possuíam especialização,
mestrado e/ou doutorado. A maioria (97,5%) afirmou avaliar a dieta de crianças
submetidas à exclusão do leite de vaca, entretanto, somente 48% o faziam de
forma mais detalhadas, incluindo o cálculo da ingestão alimentar. Apenas 38,7%
comparam a ingestão alimentar da criança com algum padrão de recomendação. A
recomendação diária da ingestão de cálcio para crianças com até 36 meses foi
corretamente assinalada por 22% dos pediatras e 60,7% dos nutricionistas (p=0,001). Produtos não adequados como
substitutos do leite de vaca seriam recomendados por 66% dos pediatras e 48,3%
dos nutricionistas. Com relação à leitura de rótulos de produtos
industrializados, 81,6% dos pediatras e 96,4% dos nutricionistas orientam os
pais a ler todos os termos que indicam a presença das proteínas do leite de
vaca.
Conclusões: Os
pediatras e nutricionista demonstraram erro conceitual no que se refere às
principais recomendações terapêuticas na alergia às proteínas do leite de vaca.
Palavras-chave: substitutos do leite; dieta; questionários; conhecimentos, atitudes e prática em saúde.
AbstRACt
Objective:
Evaluate the knowledge of pediatricians and nutritionists regarding the
exclusion diet of cow milk and derivates, with emphasis on questions related to
the nutrition of children submitted to such diet.
Methods:
Cross-sectional study that enrolled pediatricians (n=53) and
nutritionists (n=29) from public hospitals in São Paulo, Brazil, during 2005.
Data was collected through selfadministered questionnaires.
Results: The age
of the professionals varied from 21 to 50 years old. Regarding professional
experience, 41.2% were graduated for less than five years and 91.6% had a
specialization course, masters and/or PhD degree. The vast majority of
professionals (97.5%) confirmed that they regularly evaluated the diet of
children that needed exclusion of cow milk. However, only 48% of the
professionals conducted a more detailed evaluation of the diet, including
calculations of food ingestion. Only 38.7% of the professionals compared
child’s food ingestion with some recommended pattern. Recommendations for daily
ingestion of calcium by children up to the age of 36 months were properly
mentioned by 22% of the pediatricians and 60.7% of the nutritionists (p=0.001). Inadequate cow milk substitute
products were recommended by 66% of the pediatricians and by 48.3% of the
nutritionists. Regarding labels of industrialized products, 81.6% of the
pediatricians and 96.4% of the nutritionists advised the parents to look for
all terms that could indicate the presence of cow milk protein.
Conclusions: Pediatricians
and nutritionists made conceptual errors in their main recommendations
regarding the treatment of cow milk protein allergy.
Key-words: milk
substitutes; nutritionist; diet; questionnaires; health knowledge, attitudes
and practice.
Endereço
para correspondência:
Mauro
Batista de Morais
Rua
Pedro de Toledo, 441
CEP
04039-031 – São Paulo/SP
E-mail:
mbmorais@osite.com.br
Recebido
em: 2/2/2007 Aprovado em: 9/4/2007
Introdução
O aleitamento materno promove crescimento e nutrição adequados,
proteção contra doenças e infecções, além de fortalecer o vínculo entre mãe e
filho(1). A amamentação exclusiva nos primeiros quatro a seis
meses de vida e complementada até os dois anos de idade é recomendada pela
Organização Mundial de Saúde (OMS)(2). Verifica-se, em
nosso meio, que o número de crianças amamentadas ainda é pequeno, e a
introdução precoce de outros tipos de leite é comum(1). O leite de
vaca é freqüentemente utilizado em substituição ao leite materno; logo, as suas
proteínas são os primeiros antígenos alimentares com os quais o lactente tem
contato, o que o torna o principal alimento envolvido na gênese da alergia
alimentar nesta idade(3).
A prevalência estimada de alergia às proteínas do leite de
vaca é de 2 a 3% em crianças menores de três anos(4,5). Os
sintomas mais freqüentes manifestam-se no trato gastrointestinal, trato
respiratório e pele(3,6,7). As manifestações clínicas incluem
urticária, prurido, vômito, diarréia, náusea, dor abdominal, angioedema,
broncoespasmo e constipação
intestinal, dentre outras(3,7).
O diagnóstico de alergia às proteínas do leite de vaca deve
ser realizado com cautela, uma vez que seu tratamento se baseia na exclusão do
leite de vaca, que é importante fonte de nutrientes, como o cálcio(8).
Além das proteínas do leite de vaca, algumas crianças podem desenvolver alergia
às proteínas da soja, que, neste caso, devem também ser retiradas da dieta(7).
Durante o período de exclusão do leite de vaca e seus
derivados, o profissional de saúde deve orientar os familiares ou responsáveis
a estarem atentos à leitura dos rótulos dos produtos industrializados, antes de
os oferecerem aos seus filhos. As fórmulas específicas para substituir o leite
de vaca e o uso de suplementos de vitaminas e minerais devem ser prescritos a
fim de que seja oferecida uma dieta isenta do componente alergênico, mas
nutricionalmente adequada(9).
Pelo fato do leite de vaca ser importante fonte de
nutrientes, como já mencionado, a sua eliminação da dieta sem adequada
substituição pode prejudicar o crescimento normal e a qualidade nutricional da
dieta(10,11). Dessa forma, tão importante quanto a orientação aos
pais é a avaliação da ingestão alimentar e do estado nutricional das crianças
durante a dieta de exclusão. Esta necessidade é reforçada pelos resultados de
estudos que demonstram menor ingestão de energia(11) e
nutrientes, principalmente o cálcio, em crianças com alergia às proteínas do
leite de vaca, quando comparadas a crianças sem alergia(4,11-15).
O objetivo deste estudo é descrever os conhecimentos de
pediatras e nutricionistas com relação à dieta de exclusão do leite de vaca e
seus derivados, com ênfase em questões relacionadas à nutrição da criança
submetida a esta terapêutica.
métodos
Trata-se de um estudo transversal descritivo, envolvendo
amostra de conveniência constituída por 53 pediatras e 29 nutricionistas
escolhidos aleatoriamente em três hospitais públicos do Município de São Paulo,
no período de janeiro a dezembro de 2005.
Na amostra selecionada, foram incluídos médicos residentes
em pediatria e pediatras (gerais ou especialistas). Os nutricionistas
selecionados atuavam na área clínica, hospitalar e/ou ambulatorial, não sendo
incluídos os nutricionistas com atuação exclusiva na área de produção de
alimentos.
O instrumento utilizado para a coleta de dados de ambos os
profissionais foi um mesmo questionário auto-administrado, que constava de uma
parte inicial de identificação, com informações sobre sexo, idade, tempo de
graduação e grau de especialização. A segunda parte era constituída por
perguntas de múltipla escolha sobre o tratamento de lactentes com alergia às
proteínas do leite de vaca, incluindo as seguintes questões:
•
Quais dos seguintes produtos podem ser utilizados na
dieta de exclusão de lactentes com quadro de alergia às proteínas do leite de
vaca, podendo assinalar mais de uma opção: 1. fórmula à base de hidrolisado
protéico;
2. fórmula à base de proteína de soja; 3.
leite de cabra; 4. bebida/suco à base de extrato de soja; 5. fórmula láctea sem
lactose; 6. fórmula à base de aminoácidos e 7. fórmula láctea parcialmente
hidrolisada. Em todas as opções foram dados exemplos de seus nomes comerciais.
•
Na sua rotina de atendimento, as crianças com alergia
às proteínas do leite de vaca são avaliadas e orientadas por nutricionistas?
(Sim/Não). Está questão foi formulada somente para os pediatras.
•
Ao consultar uma criança em dieta isenta de proteína do
leite de vaca, faz parte da sua rotina avaliar a sua dieta? (Sim/Não). No caso
de resposta afirmativa, seguia-se a questão: Você realiza cálculo da ingestão
alimentar destas crianças? (Sim/Não).
•
Você adota algum padrão de recomendação de ingestão de
nutrientes (por exemplo, a RDA – Recommended
Dietary Allowance, ou a DRI – Dietary
Recommended Intake(16-17)) para avaliar a adequação da
dieta de crianças em dieta isenta de proteína do leite de vaca? (Sim/Não). Se a
resposta for sim, qual das recomendações para nutrientes você utiliza com maior
freqüência: RDA, DRI ou outras.
•
Assinale a recomendação de ingestão diária de cálcio
(mg/dia) para as seguintes faixas etárias, devendo escolher apenas uma opção
para cada faixa etária: 0-6 meses: 210mg, 400mg, 800mg, 950mg, não sei, outro;
7-12 meses: 270mg, 600mg, 1000mg, 1300mg, não sei, outro; 13-36 meses: 500mg,
800mg, 1300mg, 1500mg, não sei, outro.
•
Qual dos itens deve ser retirado da dieta de crianças
com diagnóstico de alergia às proteínas do leite de vaca, devendo escolher somente
uma alternativa: 1. soja; 2. leite de vaca; 3. caseína; 4. leite de vaca,
derivados do leite e preparações que contenham leite; 5. leite de vaca e todos
os seus derivados; 6. queijos e iogurtes.
•
Você faz alguma orientação para os pais/responsáveis de
crianças com alergia às proteínas do leite de vaca sobre a leitura de rótulos
de produtos industrializados? (Sim/Não). Se a resposta for sim, como você faz
esta orientação sobre a leitura de rótulos? 1. Você orienta que deve ser
observada a presença do termo leite e de outros termos como, por exemplo,
lacto-albumina, caseína, frações do leite, queijo e manteiga; 2. Você orienta
que deve ser observado apenas a presença do termo leite nos ingredientes do
produto; 3. Outro tipo de orientação.
A terceira parte do questionário trazia perguntas sobre
conceitos relacionados ao tratamento da alergia às proteínas do leite de vaca,
nas quais o entrevistado deveria assinalar “concordo”, “discordo” ou
“desconheço”. Foram abordados os seguintes tópicos:
•
Em uma criança com alergia ao leite de vaca, deve-se
também eliminar da dieta outros alimentos alergênicos como, por exemplo, soja,
ovos, peixe, amendoim, como uma medida preventiva, a fim de evitar que possam
ocorrer outras reações.
•
Lactentes em aleitamento materno exclusivo podem
desenvolver alergia ao leite de vaca.
•
A introdução precoce do leite de vaca aumenta o risco
de desenvolvimento da alergia ao leite de vaca.
•
Leite de cabra ou de qualquer outro animal (ovelha,
jumenta e outros) pode ser utilizado como substituto do leite de vaca para
crianças com alergia ao leite de vaca.
•
Pacientes com intolerância à lactose devem excluir de
sua dieta todos os alimentos que contenham proteínas do leite de vaca.
O questionário descrito foi elaborado pelos autores,
avaliado e reestruturado após a realização de um projeto piloto com 30
profissionais.
Para a análise dos resultados, foram utilizados os testes
exato de Fisher e do qui-quadrado, empregando o programa Sigma Stat(18).
O nível de significância foi estabelecido em 5% ou 0,05.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sendo obtido consentimento
esclarecido por escrito de todos os participantes.
Resultados
tabela 1 – Características gerais
dos pediatras e nutricionistas
*Um ou
mais entrevistados não responderam a questão; +entrevistados possuíam mais de
um tipo de pós-graduação
|
As características gerais da população estudada
encontram-se na Tabela 1. Observa-se que a proporção de nutricionistas do sexo
feminino, com idade inferior a 30 anos e tempo de formação menor que cinco anos
foi superior à dos pediatras. Em relação ao grau máximo de pós-graduação, 95%
dos profissionais possuíam especialização, mestrado e/ou doutorado. Deve ser
ressaltado que 41,2% dos profissionais eram formados a menos de cinco anos.
No Gráfico 1, observa-se que produtos como leite de cabra,
fórmula láctea sem lactose e fórmula láctea parcialmente hidrolisada, que não
são recomendados para o tratamento da alergia às proteínas do leite de vaca,
foram considerados adequados por alguns profissionais. Também se observa a
indicação de uso de bebidas à base de extrato de soja como substituto do leite
de vaca por 44% dos profissionais
entrevistados. Nota-se que 66% (35/53) dos pediatras e 48,3% (14/29) dos
nutricionistas (p=0,18) prescreveriam
pelo menos um produto considerado inadequado para o tratamento da alergia ao
leite de vaca, dentre os seguintes: bebidas/sucos à base de extrato de soja,
leite de cabra, fórmula láctea sem lactose e fórmula láctea parcialmente
hidrolisada. Além disso, constata-se que cerca de 25 e 40% dos profissionais
não apontaram, respectivamente, as fórmulas à base de hidrolisado protéico e
fórmulas à base de aminoácidos como opções terapêuticas.
Gráfico 1 – Percentagem de pediatras e
nutricionistas que recomendam produtos como substitutos do leite de vaca
Tabela 2 – Tipo de avaliação dietética realizada, adoção
de padrão de recomendação de ingestão de nutrientes e recomendação da
ingestão de cálcio
*Um nutricionista não respondeu; RDA: Recommended Dietary Allowance; DRI: Dietary Recommended Intakes
|
Na rotina de atendimento, 52,8% dos pediatras confirmaram
que crianças com alergia às proteínas do leite de vaca são avaliadas e
orientadas por nutricionistas. Na Tabela 2 são apresentadas as respostas
relativas à forma de avaliação da alimentação das crianças em dieta isenta de
proteínas do leite de vaca. A maioria dos profissionais (97,6%) afirma
realizar, rotineiramente, a avaliação da dieta. Essa porcentagem diminui
expressivamente, principalmente em relação aos pediatras, quando questionados
se avaliam a dieta com mais detalhamento, incluindo o cálculo dietético
quantitativo da ingestão de energia, macro e micronutrientes. Quanto ao cálculo
dietético, observa-se também proporção maior de nutricionistas, em relação aos
pediatras, que adotam algum padrão de referência para analisar a quantidade de
cada nutriente na dieta da criança (Tabela 2).
Com relação ao conhecimento da recomendação de ingestão
diária de cálcio (mg/dia) para crianças com até 36 meses, foram considerados
corretos os valores recomendados tanto pela RDA(16) quanto
pela DRI(17). O número de acertos por faixa etária pode
ser verificado na Tabela 2. Quando avaliado o número de profissionais que
responderam corretamente, apenas 22% dos pediatras e 60,7% dos nutricionistas (p=0,001) acertaram a recomendação de
cálcio em todas as faixas etárias.
Questionados sobre os alimentos que devem ser excluídos
durante o tratamento da alergia às proteínas do leite de vaca, 92,4% dos
pediatras e 89,6% dos nutricionistas responderam corretamente a questão; porém,
20,7% dos pediatras e 17,2% dos nutricionistas limitam a exclusão da dieta ao
leite de vaca e seus derivados, mas não mencionaram os produtos
industrializados e as preparações que podem conter as proteínas do leite de
vaca.
Com relação à leitura de rótulos de produtos
industrializados, 81,6% dos pediatras e 96,4% dos nutricionistas orientam os
pais e/ou responsáveis das crianças a observarem todos os termos que indicam a
presença das proteínas do leite no produto.
Quanto à necessidade de eliminar da dieta de crianças com
alergia às proteínas do leite de vaca outros alimentos alergênicos como soja,
ovos, peixe e amendoim, 34% dos pediatras e 30% dos nutricionistas concordaram
que esta conduta preventiva deva ser adotada a fim de que sejam evitadas
alergias a outros alimentos.
Relacionado ao aleitamento materno, 75,4% dos pediatras e
62% dos nutricionistas concordam que lactentes podem desenvolver alergia ao
leite de vaca mesmo estando em aleitamento materno exclusivo. Por outro lado,
88,6% dos pediatras e 93,1% dos nutricionistas concordam que a introdução
precoce do leite de vaca pode aumentar o risco de desenvolvimento da alergia ao
leite de vaca.
A afirmação de que leites de outros mamíferos poderiam ser
utilizados como substitutos do leite de vaca para crianças com alergias às
proteínas do leite foi aceito por 15,2% dos pediatras e 13,7% dos
nutricionistas.
A intolerância à lactose, muitas vezes, é confundida com
alergia às proteínas do leite de vaca. Nossos resultados mostraram que 30,8%
dos pediatras e 17,2% dos nutricionistas consideram necessária a retirada de
todos os alimentos que contenham as proteínas do leite de vaca nos casos de
intolerância à lactose.
Discussão
A alergia às proteínas do leite de vaca desenvolve-se,
principalmente, em crianças menores de dois anos(6,19), fase na
qual o leite de vaca representa uma das principais ou única fonte de
nutrientes. Assim, sua exclusão pode comprometer a qualidade nutricional da
alimentação. Para lactentes, é difícil a substituição total do leite de vaca
por alimentos sólidos(4), de modo que é necessário o uso de
substitutos administrados em mamadeira para que a ingestão diária de energia e
nutrientes seja adequada.
Durante a dieta de exclusão, preconiza-se a continuidade do
aleitamento materno com a retirada das proteínas do leite de vaca da dieta
materna. Entretanto, na impossibilidade de manutenção do leite materno, devem
ser utilizadas fórmulas específicas em substituição ao leite de vaca(5,10).
Segundo a recomendação da AAP, no ano 2000(20), fórmulas à base
de soja podem ser prescritas para pacientes com reações mediadas por IgE, sem
sintomas gastrintestinais e com idade superior a seis meses. Para os demais
lactentes, recomendam-se fórmulas à base de hidrolisado protéico e, se não
houver remissão dos sintomas, indicam-se as fórmulas à base de aminoácidos. A
Sociedade Européia de Gastroenterologia Pediátrica, Hepatologia e Nutrição(21)
não recomenda o uso de fórmulas à base de soja no início do tratamento; entretanto,
em nosso estudo, verifica-se que grande parte dos profissionais indica o uso
destas fórmulas como substitutos do leite de vaca na vigência de dieta de
exclusão das proteínas do leite de vaca. Com relação às fórmulas a base de
aminoácidos, é notável o percentual de profissionais em nosso estudo (40%) que
não incluiu tal fórmula como opção terapêutica, visto que, nos casos mais
graves, esta é a melhor alternativa.
Ambas as entidades recomendam a exclusão de qualquer
produto ou fórmula que contenha a proteína intacta ou parcial do leite, além de
leites de outras espécies, como cabra e ovelha, da dieta dos lactentes com
alergia às proteínas do leite de vaca(20,21). No nosso
estudo, alguns profissionais indicaram como substitutos adequados o leite de
cabra, fórmulas lácteas sem lactose e fórmulas com proteínas lácteas
parcialmente hidrolisadas, condutas inadequadas para o tratamento das alergias
às proteínas do leite de vaca. Caso os sintomas desapareçam com a introdução de
leite de cabra, por exemplo, deve-se considerar que, provavelmente, a hipótese
diagnóstica de alergia às proteínas do leite de vaca não é correta, sendo
necessário planejar a realização de teste de desencadeamento.
Bebidas ou sucos à base extrato de soja foram considerados
por vários profissionais como possíveis substitutos ao leite de vaca. Existe,
no mercado, uma série destes produtos com baixo custo se comparados às fórmulas
à base de proteína de soja, o que estimula sua utilização na dieta de lactentes
com alergia às proteínas do leite de vaca. Contudo, a maior parte destes
produtos não são fortificados e/ou formulados especificamente para a faixa
etária do lactente, o que pode ocasionar ingestão insuficiente de nutrientes,
principalmente cálcio(11,22).
Para promover benefícios e manutenção à saúde, a
alimentação deve ser avaliada sob aspecto qualitativo e quantitativo. A
avaliação qualitativa, efetuada por grande parte dos profissionais
entrevistados, possibilita uma visão geral dos nutrientes presentes na dieta,
principalmente, dos grupos básicos de alimentos (carboidratos, lipídeos e
proteínas). Todavia, durante a dieta de exclusão é fundamental uma avaliação
detalhada da alimentação da criança, incluindo o cálculo dietético,
possibilitando a detecção de ingestão deficiente ou excessiva de macro e
micronutrientes, tendo como base um padrão de referência, por exemplo, a RDA(16)
ou a DRI(17). Especificamente em indivíduos submetidos a
esta terapêutica, tal cálculo será a base para modificações na conduta, como
adequações no volume de fórmula a ser administrada e dose de suplemento de
cálcio a ser prescrito. Ao comparar a ingestão de nutrientes de crianças com
alergia às proteínas do leite de vaca e crianças saudáveis, diversos estudo
demonstram baixa ingestão de proteínas(4,11,14), energia,
lipídeos(11) e cálcio(4,11,14,22-24), entre
outros minerais e vitaminas(4,14,24).
Observamos que a proporção de pediatras, em relação às
nutricionistas, que adota um padrão de recomendação de nutrientes é
significantemente menor; no entanto, este resultado é esperado, visto que
avaliar a dieta quantitativamente é uma das atribuições do nutricionista. Para
tal, é necessário utilizar um padrão de referência para avaliar a ingestão
diária de nutrientes. Com relação ao conhecimento sobre a recomendação da
ingestão diária de cálcio, ambos os profissionais não responderam corretamente
a quantidade preconizada em todas as faixas etárias questionadas. O cálcio é um
dos principais nutrientes passíveis de carência na dieta de exclusão, pois a
principal fonte deste mineral na dieta é o leite de vaca e seus derivados.
Logo, é importante encorajar a adoção de um padrão de recomendação de
nutrientes pelos profissionais, a fim de auxiliar na avaliação da dieta e na
prescrição de suplementos, principalmente de cálcio.
As recomendações específicas da ingestão de cálcio por
faixa etária, de acordo com a RDA, são: 400mg para menores de seis meses, 600mg
entre os sete e 12 meses e 800mg dos 13 aos 36 meses. As DRIs, baseadas na
ingestão adequada (“adequate intake”), definem, para estas faixas etárias, os
seguintes valores, respectivamente: 210mg, 270mg e 500mg. Tais foram os valores
considerados corretos na questão que avaliava o conhecimento dos profissionais
estudados, ou seja, aceitou-se como correto as respostas de ambas as
recomendações (RDA e DRI).
Na prática, existe a tendência a optar
pelas DRIs; todavia, devido aos diferentes valores de recomendação para cálcio
encontrados nos diversos guias, cabe ao profissional analisar e selecionar qual
das recomendações melhor representa o consumo ideal de seu paciente. Segue, no
Anexo Final, um exemplo prático de cálculo para suplementar ou adequar à
ingestão de cálcio.
Familiares de crianças submetidas à dieta de exclusão das
proteínas do leite de vaca devem ser orientados constantemente sobre os
alimentos a serem retirados da dieta, já que, com o avançar da idade, a dieta
da criança torna-se mais variada, muitas vezes pela introdução de alimentos
industrializados. É importante que a orientação não se limite a: “exclua o leite
de vaca e seus derivados”. O profissional de saúde deve orientar os familiares
a excluir todos os alimentos e preparações que contenham proteínas do leite de
vaca, enfatizando a importância da leitura dos rótulos dos produtos
industrializados(9). Ao avaliarem a capacidade de pais de
crianças com alergia às proteínas do leite de vaca para identificar a presença
de leite na composição de produtos industrializados, Joshi et al(25) observaram que poucos foram capazes de
identificar todos os rótulos que indicavam a presença de leite. Este dado
mostra a relevância da orientação sobre a forma de interpretar corretamente a
lista dos ingredientes que compõem os produtos industrializados. Em nosso
questionário, é provável que as respostas obtidas sobre a orientação aos
pais/responsáveis em relação à leitura de rótulos dos produtos industrializados
tenham sido superestimadas, visto que, ao questionar um profissional sobre uma
conduta que o bom senso induz a considera-lá apropriada, automaticamente, o
profissional se sente na obrigação de introduzi-la em sua conduta, mesmo que
não a empregue rotineiramente.
Em relação à eliminação preventiva de outros alimentos
alergênicos como soja, ovos, peixe e amendoim da dieta de crianças com alergia
às proteínas do leite de vaca, ainda há controvérsias na literatura. Contudo,
se julgada necessária, deve ser realizada com cautela para que a dieta de
exclusão não se torne ainda mais restritiva, aumentando a probabilidade de
déficits nutricionais. A AAP(20) recomenda a retirada destes produtos
da dieta, tanto para a nutriz, no caso de aleitamento materno, como para as
crianças em tratamento de alergia ao leite de vaca. Por outro lado, a Sociedade
Européia de Gastroenterologia Pediátrica, Hepatologia e Nutrição(21)
não recomenda a exclusão de outros alimentos, além da proteína alergênica.
Portanto, para este quesito, ambas as respostas encontram respaldo na
literatura.
A alergia às proteínas do leite de vaca e a intolerância à
lactose podem ser confundidas com certa freqüência, o que gera condutas
terapêuticas equivocadas. A exclusão de todos os alimentos que contêm proteínas
do leite de vaca é a terapêutica adotada nos casos de alergia, pois o fator
desencadeante das reações alérgicas é a presença das proteínas do leite. Por
outro lado, na intolerância à lactose, o foco não deve ser as proteínas do
leite, mas sim o carboidrato: a lactose. É preciso observar a tolerância
individual, isto é, a quantidade de lactose que o indivíduo pode ingerir sem
apresentar sintomatologia, não sendo necessária a exclusão obrigatória e total
do leite e de seus derivados(26-27).
Considerando que a amostragem de conveniência avaliada
neste inquérito foi constituída em três hospitais, onde se desenvolvem
atividades de ensino, os resultados deste estudo não podem ser generalizados
para a população total de médicos pediatras e nutricionistas. Outro ponto que
sustenta esta suposição relaciona-se ao alto grau de pós-graduação dentre os
profissionais incluídos no estudo, conforme Tabela
Anexo final
1, apesar do pouco tempo de graduação.
Portanto, o grupo de profissionais incluídos em nosso estudo provavelmente
possui conhecimentos mais completos e adequados sobre o tratamento da alergia
ao leite de vaca do que a maioria dos outros profissionais.
Exemplos
práticos de cálculos para suplementar e/ou complementar as recomendações de
500mg/dia de cálcio baseado nas DRIs.
exemplo 1: Um paciente de 15 meses que recebe 450mL de
fórmula de hidrolisado de proteína, além de outros alimentos, necessita ou
não de suplementação de cálcio?
As
fórmulas à base de hidrolisado protéico existentes no mercado contêm, em
média, 400mg de cálcio em 100g de pó do produto. A fórmula preparada com 5g
para cada 30mL fornecerá 300mg de cálcio. Considerando que os demais alimentos
da dieta da criança contêm 100mg de cálcio, deverão ser suplementados 100mg
de cálcio ou aumentar a oferta de fórmula de hidrolisado de proteína em
150mL.
exemplo 2: Um paciente de 24 meses que recebe 420mL de
fórmula à base de soja, além de outros alimentos, necessita ou não de
suplementação de cálcio?
As fórmulas à base de soja contêm em média
437,5mg de cálcio em 100g de pó do produto. A fórmula preparada com 5g de pó
para cada 30mL fornecerá 306mg de cálcio. Considerando que os demais
alimentos da dieta da criança contêm em média 100mg de cálcio, deverão ser
suplementados, aproximadamente, 100mg de cálcio ou aumentar a oferta de
fórmula à base de soja em 140mL.
|
No entanto, mesmo com as ponderações acima apresentadas,
nossos resultados permitiram concluir que os profissionais entrevistados,
pediatras e nutricionistas, demonstraram erro nos conceitos das principais
recomendações terapêuticas da alergia às proteínas do leite de vaca, assim como
houve falta de conhecimento, especialmente por parte dos pediatras, em relação
às necessidades de cálcio para os lactentes. As discordâncias observadas em
algumas orientações ou condutas ressaltam a necessidade de se elaborar
estratégias educacionais que ampliem os conhecimentos destes profissionais,
visando evitar a recomendação de dietas de exclusão sem efetividade ou a
ocorrência de déficits nutricionais por dietas que não preencham as
necessidades nutricionais do lactente.
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[1] Mestranda do
programa de pós-graduação em Nutrição da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp)
[2] Doutoranda do
programa de pós-graduação em Nutrição da Unifesp
[3] Professora
visitante da Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica da Unifesp 4Médica
assistente e mestre da Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica da Unifesp
[4]
Professor titular da Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica e reitor da
Unifesp
[5] Professor associado
e livre-docente da Disciplina de Gastroenterologia
Pediátrica da Unifesp
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